terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Bênção

Estava pouco me importando com o que dizia uma repórter, sobre um desastre lá do Chile. Eu não estava mais dentro de casa, mas dava para ouvir os barulhos da televisão que me incomodavam até o último estrago nos tímpanos. Mas uma coisa, lá fora, me chamava bastante atenção: um senhor, idoso, de barba grisalha e riso farto, como uma criança recebendo seus presentes no Natal. Era baixinho, curvado pelos anos. Usava bengala. Seu semblante me fazia lembrar de meu avô. Ele andava sorridente, contagiante, quando, de repente, cai um anjo lá do céu.
Eu parei. Meus sentidos já não eram meus. Deixaram de existir. Fiquei pasma, branca, roxa, amarela e azul. Até vermelha fiquei. Parecia um arco-íris àquelas alturas. Fitei, concentrada, o senhor, esperando um beliscão para comprovar que era um sonho. Nada. Ninguém me beliscava nem falava nada. Também, eu estava sozinha, na chuva, escrevendo e acariciando minha gatinha, Mimi. Certo que esperava um miado da gata, ou de outro felino. Ou um latido de qualquer cusco que estivesse presenciando aquela cena divina. Ou aquele sonho. Naqueles instantes era tudo indecifrável.
Até que, quase me convencendo de que era verdade, o anjo lhe estendeu um manto com dizeres esquisitos, quase invisíveis de longe. O anjo sorriu, sussurrou algo no ouvido do senhor. Ninguém entendera. Ninguém. Só se sabia que era uma dica. E uma boa dica, pois viera num tom contrário de melancolia, e chegara ao homem no mesmo instante que vi seus olhos cintilarem. E bastava para completar aquele momento maravilhoso. E vislumbrei um momento de claridade em seu peito. O velho parecia feliz. E estava.
Mas o espanto não saíra de meu rosto. Continuava intacto. Era uma loucura! Houvera sido Deus quem lhe mandara aquela bênção? Seria o senhor tão puro, que aos nossos olhos não era nada? Ele tinha, sim, a pureza mais cristalina que eu tinha visto até aquele dia. E que só aquele dia descobri que pudesse existir.
A cena foi algo de divino esplendor! Mas nada que parasse o mundo. Foi rápido e poucos ficaram sabendo. Depois que o momento tornou-se findo, o senhor vagou silencioso em rumo a sua casa. O sorriso tinha uma força maior e mais vívida. O sorriso já tivera sido seu, em outras datas, e retornara. Observei sua chegada até a casa, toda enfeitada com pinheiros e pisca-piscas, Papai Noel na vidraça! Toda enfeitada: era véspera de Natal. A cidade estava com um outro sorriso no rosto. Não mais amargo. Era festa! Era alegria! E, para o velhinho, não era diferente. Entrou em casa, sentou-se em seu sofá. Por um instante bocejou uma dica, mas não fui capaz de entender. Tinha a ver com um Menino que lhe trouxera uma bênção. Falou de coisas tão simples, tão difíceis de enxergar. Comentou daquela data festiva, dos olhos e desejos das criancinhas que rodeavam a cidade. E de sua alegria.
"Aninha, acorda!". Foi um grito de minha mãe. Eu tivera dormido sobre o banco branco, com meu violão ao lado. Ao acordar, a televisão já não me incomodava, pois a notícia era um anjo que caíra do céu. Mas lá no Chile. E eu, que não quisera prestar atenção desde o início da notícia, tive o sonho mais lindo desde então. O sonho mais concreto que iluminou e abençoou minha mente.
Eu era uma criança como as outras. Meus pais não tinham muita coisa para me dar de presente de Natal. Mas eu queria. Eu exigia demais dos frutos de cima de uma árvore comprida: não os podia colher. Depois daquela divindade, as exigências saíram como fantasmas, branquinhas e puras de minha mente - mas não com a pureza daquele senhor, pois aquela... Ah! Aquela era única! E o maior e mais lindo presente que recebi em todos os anos, no Natal, fora aquele! O mais lindo e maior. E eterno pra mim. Não contei para ninguém, e só eu sei até hoje. Sei mais: nunca ganharei um presente melhor, pois aquele sonho foi uma mostra de que vale a pena viver. De que o Patrão velho, de cima, nos ilumina com seu manto sagrado e não é conversa de ninguém!

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